Espaço Ribas Ninja: Linguagem

Quando a linguagem é campo minado

André Ricardo Nunes Martins

Das metáforas que se pode aplicar à língua, a da ponte é uma das mais expressivas. Uma ponte serve para unir espaços, transpor barreira, propiciar passagem de um lado a outro, proporcionar ida e volta. Assim, é o idioma, um código que nos permite comunicar – “pôr em comum” – ideias, sentimentos, sensações. O otimista olha por essa perspectiva, mas também é verdade que a ponte implica, por outro lado, limitação e vulnerabilidade. Ao passar por ela, a atenção de pedestres e motoristas deve ser redobrada (daí porque costuma-se proibir ultrapassagens de veículos sobre a ponte). Ademais, a convergência de tudo e de todos para um mesmo lugar de passagem pode significar – em tempos de conflito bélico, por exemplo – exposição ao perigo. Em termos de estratégia militar, quando não se destrói uma ponte, pode-se usá-la para ataques-surpresa.

Assim, é a língua nossa de cada dia. Ao tempo que nos viabiliza a vida como entes políticos que somos, tornando-se instrumento essencial ao desenvolvimento do trabalho, da cultura, das ideias, revela-se também limitada, sujeita a mal-entendidos e incompreensões. Aqui, faço uma distinção. Um aspecto é o caráter limitado da língua, de cada uma e de todas elas: operam com uma série limitada de possibilidades semânticas, de combinações morfológicas e fonológicas. Alguém pode dizer que as opções são infinitas. Na prática, vemos que não são. Estamos limitados à necessidade ontológica de entender e de nos fazer entendidos. As experimentações, tão ao gosto de literatos e artistas, encantam-nos, mas isso é conjuntura à parte. Um bom exemplo do caráter limitado da linguagem é o fato de que boa parte das pessoas no mundo só consegue se comunicar na sua língua materna. Outra grande parte domina duas, três ou quatro línguas. Mas qualquer pessoa que consegue se expressar em mais de dez delas já é raridade digna de nota. O outro aspecto é valer-se das ambiguidades, do caráter limitado da língua, da (in)finitude das escolhas nesse território para construir ideias que se deseja promover ou para combater outras com as quais não se concorda.

O debate público no Brasil sobre os direitos reivindicados pelo movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) e a oposição a eles, feita por setores das igrejas evangélicas proporciona um bom exemplo do que estamos tratando aqui. Lançadas na mídia – cuja forma de usar a língua impõe restrições específicas – ideias e demandas desses dois segmentos ganham repercussão intensa. Passado o calor do debate, as pessoas só conseguem lembrar-se de uma ou outra frase dita, de uma ou outra imagem pisada e repisada. Sei que há uma discussão a ser feita sobre a capacidade, e mesmo o compromisso, de setores da mídia em promover um bom debate sobre temas controversos, mas isso deixo para outra oportunidade. Assim, quero refletir acerca das possibilidades da língua mesma e sobre como ela é manipulada (penso na imagem da atividade de manipulação de drogas e medicamentos) para atender a um propósito social e político.

Não farei, aqui, um exame minucioso do léxico que tem sido empregado (para isso, seria necessário definir um conjunto de textos a investigar, um corpus) consideremos, ainda que brevemente, algumas das expressões que têm sido usadas, muito frequentemente, nesse debate. No campo discursivo dos defensores da causa gay, é possível encontrarmos “homofobia”, “diversidade”, “livre escolha”, “direito à livre expressão do amor”, “Estado laico”. Já no campo dos que combatem esse movimento, e em especial de setores evangélicos, podem-se ver expressões como “liberdade religiosa”, “livre expressão da fé”, “princípios ou valores bíblicos”, “pecado e pecador”, “conversão ou mudança de vida”.

Sobre o primeiro campo discursivo, nota-se um emprego elástico do termo “homofobia”. De expressão do campo da saúde, ela passa a ser um grande guarda-chuva que abrange toda e qualquer expressão de discordância em relação às teses LGBT ou à vivência da homossexualidade. No uso de “diversidade” e “livre escolha”, remete-se a uma sociedade democrática, apoiada na garantia das liberdades individuais. O curioso é que os próprios evangélicos, em outras conjunturas, recorrem às mesmas expressões, ou ao que elas representam, para reivindicar espaço frente a uma sociedade majoritariamente católica. Quanto a “direito à livre expressão do amor”, pode-se entender desde a simples troca de afeto em público até as – para muita gente – manifestações escandalosas de uma parada gay. Por fim, no caso de “Estado laico”, percebe-se o receio de que o país perca essa condição, haja vista a intervenção de grupos religiosos ou de seus representantes em espaços do poder republicano, como o parlamento. Até que ponto o risco é efetivo? Ou, por outro lado, não se trata simplesmente de iniciativas públicas e legítimas do segmento religioso, o que é garantido pelo próprio Estado laico?

Já no campo discursivo evangélico, “liberdade religiosa” e “livre expressão da fé” parecem indicar que o segmento ou parte dele sente-se atingido pela ação do movimento gay. Até que ponto seria uma ameaça real ou, ao contrário, um temor infundado (o que denunciaria emprego utilitário e conveniente delas)? O uso de “princípios ou valores bíblicos”, e de “pecado e pecador” no debate faz sentido por se tratar de uma sociedade de formação e base cristã, da qual comunga a maioria esmagadora da população brasileira. Mas, ainda assim, e mesmo entre cristãos, há quem rejeite essa cosmovisão ou discorde de certos aspectos dela. Por fim, a expressão “conversão ou mudança de vida” sinaliza um dos pilares da doutrina e da prática de igrejas evangélicas. Ela se torna um ponto sério de divergência entre os dois segmentos nesse debate, com os evangélicos dizendo que o gay pode mudar de vida (com “a ajuda de Deus”) e o movimento LGBT negando que isso seja possível. Evangélicos vão citar testemunhos de pessoas que mudaram de direção. Homossexuais vão dizer que faltam elementos que confirmem que essa transformação é definitiva ou que, de fato, beneficie a pessoa. Para eles, é mais uma imposição de igreja que gera frustração e infelicidade.

Quem está com a razão? Bom, a pergunta não cabe porque a discussão aqui é linguística e política. Ademais, para alguns, minha filiação evangélica comprometeria a isenção no debate. Nesse caso então, de nada do que fosse humano eu poderia tratar. Nem você que me lê.

Acredito que a melhor saída para esse impasse começa pelo exame dos fundamentos (e atenção, porque fundamentalista tornou-se expressão da moda no debate, embora com aplicação equivocada). Refiro-me aos fundamentos da sociedade brasileira: (1) o fato de que nossa formação histórica, social e política é cristã e católica, sendo essa a expressão de fé da maioria do povo; (2) o fato de que o Brasil é uma República democrática, com uma Constituição que garante direitos e deveres a todos e proteção a minorias; (3) a compreensão de que, se nenhum crime é cometido, se não se ofende ou se agride ou se humilha as pessoas, as expressões e manifestações de fé e de sexualidade estão (e devem ser) garantidas. Há outros, mas esses já nos bastam.

Penso que, em ambos os segmentos, falta autocrítica e sobram expectativas exageradas quanto ao ideal de sociedade. Para uma convivência pacífica e respeitosa, todos têm que renunciar, não a princípios, valores ou cosmovisão, mas à ideia de que a sua perspectiva tem que prevalecer. Do contrário, mais e mais a linguagem será usada não para favorecer o diálogo e a convivência salutar. Tal conjuntura pode até gerar vencedores, mas a história mostra que os vitoriosos de hoje podem ser os perdedores de amanhã.


SOBRE O AUTOR
Jornalista, repórter da TV Senado, mestre em Comunicação e doutor em Linguística pela Universidade de Brasília. Pesquisador em análise do discurso crítica desde 1992, é membro do Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade, Nelis, da UnB, da Associação Brasileira de Linguística e da SBPC. Sua pesquisa tem priorizado temas como minorias, racismo, imprensa, mídia, identidade e práticas discursivas. Sua tese de doutoramento, defendida em 2004 – A polêmica construída; Racismo e Discurso da Imprensa sobre a Política de Cotas para Negros – foi publicada em 2011 pela Editora do Senado Federal. Para contato: andre33@uol.com.br

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